[sonhos presentes ou outras vidas de olhos fechados]

Ariane Almeida
3 min readAug 18, 2022

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“O Sonho da Mulher de um Pescador”, de Hokusai (1814). É uma imagem erótica do livro “Pinheiros Jovens”, uma obra sexual japonesa.

noite passada sonhei que estava num carro em alta velocidade, com os vidros baixos, vento gelado batendo em meu rosto. era madrugada também em minha fantasia, tocava um jazz suave no som de fundo e não tinha em mim qualquer medo de acidente. mesmo inconsciente desejei que aquele momento durasse um pouco mais, estrada parecida com a capa do disco “road to knowhere” do tommy guerrero. aperto os olhos no amanhecer tentando lembrar se era essa a música que tocava.

semana passada sonhei que os vidros baixos do carro convidaram dois homens mascarados a avançar em minha direção e tentar me tomar o computador, o meu corpo, o meu sono. acordei assustada. recordei, sem nenhum esforço, a pessoa que deixou tudo favorável à abordagem dos bandidos e senti raiva. como pode as frustrações do real invadirem meu universo onírico? me questionava já sabendo que sobre isto não tenho controle algum — há uma continuidade inegável entre o mundo desperto e o mundo do sono.

começou na pandemia essa sensação de que tudo se misturou, digo, foi nesse período que passei a perceber mais claramente a comunicação consciente-inconsciente que acontece quando finalmente abro mão da vigília. como ontem foi preciso mais tempo para desconectar da cabeça maquinando, me parece fresca a ideia de que sem essa (con)fusão de realidade e imaginação fico um tanto desorientada, cansada e também mal-humorada. aproveito do estado afetado pela noite mal dormida para refletir sobre isso tudo.

este relato passa longe de ser um diário dos sonhos — aquele que sempre quis fazer, mas nunca consegui me engajar. parece que quanto mais persigo racionalmente a lembrança do que me acontece em sono, tão mais a experiência me escorre pelas mãos. isso se confirma agora: quase me faltam palavras, mesmo que há dias pense que poderia escrever sobre 1) as pessoas, próximas e quase desconhecidas, que povoam, 2) os espaços, cotidianos e inventados, que percorro, 3) as situações, prováveis e surpresas, que ocorrem, 4) as traduções, diretas e simbólicas, que remetem às questões inconclusas de olhos abertos, 5) os diálogos e as sensações que fazem do sonho uma nova faceta do que compreendo como vida.

a partir desses últimos anos, me pergunto o que diabos acontecia comigo quando assumia não gostar de dormir ou quando acordava com pressa como se estivesse perdendo tempo na cama. no período em que meus anticorpos resolveram atacar minha própria tireóide e me era difícil sustentar o sono, batia os pés inquietos como se esse fosse meu balanço da rede ou minha canção de ninar. acho que a ansiedade invadiu meus dias com mais constância mais ou menos nesses tempos, de modo que, mesmo com os hormônios ajustados, minhas noites permaneciam desreguladas. assim como a meta agora virou ter uma coluna mais saudável, durante um bom tempo todas as minha resoluções de ano novo podiam ser resumidas a uma única, a principal, a mais importante: dormir melhor.

não consigo dar um sentido totalmente lógico a este texto, então conto como um apanhado de pequenos flashs. queria falar ainda do livro que comprei do Sidarta Ribeiro, do dia que disse “sonhei com você” e era verdade, do dia que me disseram “sonhei com você” e não acreditei, da decisão que voltei atrás após uma noite inquieta, da noite que chorei enquanto dormia, da manhã que acordei já com um sorriso no rosto, do orgasmo que tive em meio a um devaneio…

nesta noite espero continuar a sentir emoções intensas enquanto vivo a madrugada dormindo.

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