[início de 2022 ou soltura]

Ariane Almeida
3 min readJan 6, 2022

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incontido | colagem sobre papel, 2021

posso dizer que desacostumei a ter tempo de sobra. no ano passado, que mal acabou de passar, pensei estar fazendo menos, não no sentido de insuficiência, de entregar pouco ou deixar a desejar; imaginei que reduzindo atividades estaria mais livre para preencher minha agenda com outras pendências. me vi, não uma ou duas, várias vezes na mesma situação: esvaziar o dia para então poder comprometer-me com outras obrigações. acreditei sem pestanejar na desaceleração como solução, só não soube praticá-la; sigo duvidando da imposição de velocidades, porém hoje percebo que meu ritmo talvez seja um pouco frenético se comparado ao de outras pessoas, quer dizer, ritmo é relativo por si próprio, é combinação de tempos intensos-suaves-suaves-suaves-intensos-intensos-suaves-intensos alternados numa lógica muito pessoal, em intervalos específicos e individualmente corporificados. ou seja: é também violento receitar a todos uma redução de frequência, como quem prescreve uma verdade absoluta, remédio universal, cura infalível de todo o mal.

por essa introdução, me autoreferencio longe de ruídos externos, luzes exarcebadas e outros tipos de poluição frequentemente e facilmente encontradas em grandes cidades; da minha janela vejo um céu escuro que confirma a ausência de altas edificações, iluminação pública, torres de telecomunicação ou trânsito de aeronaves. daqui de onde estou, onde o tempo é naturalmente mais calmo, as horas dão passos menos ligeiros, quase não sinto o tropeçar da ânsia, senão daquela que me acompanha enquanto sede de viver. sabe como é? me habituei a pensar no futuro de tal modo que, em contato com as brechas livres de afazeres, secretamente torço que acabe o intervalo que separa o agora da próxima ocupação; fico adiantando as coisas para que chegue logo a hora de então querer o subsequente. vem daí o meu cansaço, arrisco dizer.

então a mim serve parar, do tipo estar em repouso, e também dar uma trégua ao relógio, no sentido de não acompanhar o passar dos minutos; são dois tipos diferentes de desapegar da pressa. no primeiro caso, puramente físico e ao meu ver mais desafiador, o corpo se livra da tendência ao movimento — ficar quieta, reduzir a necessidade de oxigênio, não mover sequer os olhos ou os dedos, conter-se nos ofícios internos das células e órgãos. lembrei ainda hoje desse estado quase orgânico, quando durante toda a tarde as nuvens ameaçaram uma tempestade e fizeram escurecer mais cedo; meu sistema animal, sempre presente e raramente notado, se alinhou com o ciclo do dia e sem esforço adormeci. no outro caso, do esquecimento ou da dilatação do tempo, não há padronização alguma do comportamento do corpo; podem a voz, as mãos, os olhos, o quadril, as pernas, os braços, a coluna traçarem para si o melhor plano de ação. no mesmo hoje desenhei e de repente já era noite, estou agora digitando essas palavras e preciso realmente me atentar se não quiser entrar despercebida no dia de amanhã.

é a primeira semana do ano e adquiri um planner digital, sincronizando o hábito de traçar rotinas; para esses dias anotei como prioridade: reorganização e descanso. a partir da próxima segunda volta tudo, com tudo, e ainda assim posso dizer que progredi em leituras e escrituras, mesmo sem precisar. “reorganização e descanso”, li e reconheci minha caligrafia; circulei a palavra descanso. quem sabe amanhã resista a checar os e-mails ou deixe de conferir se saiu qualquer episódio novo daquele podcast que tanto gosto, posso até fazer outra colagem sobre papel; sim, eu poderia. se há qualquer período em que não se cobra qualquer presença/assistência imediata, arrisco dizer que é nessa transição de um ano para o outro, recesso para alguns, como se fosse moralmente aceito por esses dias fechar as portas para balanço, equalizar as intensidades. permito-me, então, aprender a afrouxar os controles, e o quanto conseguir já é o suficiente.

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