[domingo em casa ou “sobre tudo aquilo que escreveria se sobrasse tempo”]

Ariane Almeida
6 min readFeb 21, 2021

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Portrait of the Dancer Aleksandr Sakharov — Alexej von Jawlensky, 1911

embora seja domingo, hoje foi o dia em que acordei mais cedo durante a semana inteira. isto é, se contarmos o domingo como o final e não o começo dela. tem disso em alguns calendários. essa informação pode não dizer nada, mas, se aqui estou me propondo a escrever, posso explicar o que agora me parece.

domingo são longos aqui na casa da minha família, especialmente quando não o uso para ir à praia tomar longos banhos de mar. por ser domingo as mulheres que ajudam na manutenção da vida na casa também não estão por aqui e por aqui quero incluir essa construção e também aquela que está no terreno logo atrás. ouso fazer essa junção, embora tenha passado rapidamente dois instantes no espaço do portão para lá. é também o dia em que mais tempo é (teoricamente) compartilhado entre os membros da família, aquela coisa bem de se reunir para almoçar, sabe? apesar de não haver pressão alguma de se manter essa tradição da refeição coletiva, já que na realidade esse não é exatamente um costume nosso. aqui as pessoas vão se arranjando pela mesa no tempo que for mais confortável individualmente, basta seguir a regra de não pegar a cadeira com vista direta para a televisão no momento em que meu pai vai comer, quase sempre ao meio dia se for conferir no relógio.

acontece que hoje eu precisei dar duas voltas de carro para fugir desse lugar. fugir mesmo, não usei palavra à toa. ouço choros até nesse instante, mesmo encerrando os escândalos, como se os gritos tivessem atravessado minha memória e se repetissem no meu insconsciente. lembro de uma amiga… conhecida, na verdade… tenho tentado me recuperar do vício linguístico de chamar a todos de amigos, migue, etc, só pela facilidade de assim me dirigir, enfim… uma mulher poderosa que conheci uma vez escreveu na sua rede social algo tipo “não confundir doença com tristeza” e reconheço esse embaralhamento de sensações. mesmo desejando muito e talvez até precisando de silêncio para ter dias melhores, não vou culpar o barulho de dor. chorar é coisa que se aprende cedo, quase automaticamente no primeiro respiro longe da placenta, e aparentemente vamos desaprendendo com o tempo — a gente envelhece e recrimina as lágrimas. nem sabemos o poder que elas possuem, ou sabemos e deixamos de lado, como se somente o pensar sobre isso já fizesse chorar e esse fosse o maior crime da atualidade. ok, fugi do tema que tinha pensado no início, mas ok, também falaria sobre isso se me permitisse uma brecha para escrever.

ontem, no caso sábado e já vinha me embaraçando pensando ter sido sexta, antes da chuva, consegui dar um mergulho no mar. até tomei um breve banho de chuva para ser sincera e essa água toda, já que o temporal permaneceu durante o dia inteiro, mexeu qualquer coisa com minhas emoções. como via de atualização: hoje o sol voltou à tona, queimando e inquietando tudo, tudo mesmo. não sei direito de onde tirei as forças para soltar essas palavras nesse site, sabe? nas últimas semanas tenho me forçado tanto a escrever e tenho conseguido, mas não o suficiente para atingir o número de páginas desejável para determinados prazos. estava na lista escrita ontem enquanto contemplava a manhã cinza:

sobre tudo aquilo que escreveria se sobrasse tempo:

  • o andar do caranguejo
  • o valor dos pequenos números tangíveis
  • do vaivém dos corpos (medidas e deslocamentos)”

vou tentar começar do meio, então…

de volta às páginas incompletas, finalzinho do ano passado comprei um livro de poesias. às vezes faço isso de seguir recomendações para conhecer novos autores e principalmente novas autoras e lá estava eu e Elizabeth Bishop. sendo justa confesso já conhecê-la: meses atrás ela me confortou com seu olhar acerca daquilo que perdemos. “The art of losing isn”t hard to master;
so many things seem filled with the intent to be lost that their loss is no disaster.”
lindo, não é mesmo? tento absorver um pouquinho desse pensamento quando não saio vencedora das batalhas que, muitas vezes, eu mesma travo à mim. a questão, que não é a de viagem (livro que tenho lido sometimes in english), é ter descoberto que Bishop publicou apenas 101 poemas durante sua carreira. grifei o apenas por ser palavra das coisas exclusivas. cento e um não me parece tanto, ao mesmo tempo que não faz tantos dias essa quantia me retornava a metas absurdas. em parceria com os artistas que não produzem em larga escala, gosto daqueles que começam suas carreiras com idade avançada. em tempos como esses nossos, quando jovens prodígios almejam seu primeiro milhão antes dos trinta, custe o que custar, me conforta fazer cálculos bizarros para desqualificar toda e qualquer tentativa de quantificar o valor do tempo vivido. por outro lado não tem me interessado nadinha essa galera que tá lançando dois álbuns por ano, em ano de pandemia. não, não. com sorte acho espaço para me movimentar nesse fluxo mais natural de ver, sentir e manifestar o que me acontece. ir tateando aquilo que consigo de fato me conectar, independente das dimensões de tempo, alcance, dessas ordens de grandeza.

foi ao receber raios solares, antes da chuva começar, que avistei o pequeno siri saindo do seu buraco. sirizinho, caranguejo pequeno, sei lá. aquele pequeno serzinho nas primeiras fases de sua vida saindo à superfície e me fazendo lembrar de tomar cuidado ao escolher onde estender minha canga. automaticamente ligou um alerta no meu corpo para lembrar que sim, estou apaixonada, pois aquele encontro me lembrou imediatamente de uma piada interna que tenho com o garoto que gosto. tudo bem, não preciso esconder uma paixão. tudo bem agora, sabe? aqui em casa, mesmo aos domingos, não se vê muita demonstração de carinho, pensei ainda mais cedo que somos uma família de solitários, cada um sofrendo e talvez chorando sozinho, já que também não é tradição dessa família deixar passar unzinho sinal de vulnerabilidade. todos numa compostura tamanha que me faz retroceder a estruturas muito, muito antigas. não consegue identificar? não tem problema, deixo claro: mulher cuida dos filhos, homem provém o sustento; mulher não reclama, homem pode se divertir; mulher não trabalha, homem não vive casamento por amor; mulher tem que se dar ao respeito, homem não se dá à palavra; mulher não goza, homem trai; mulher não ganha o suficiente, homem é quem manda. ok, e não fugi absolutamente do tema que havia pensado no início. como se alerta a um estímulo que meus sentidos não foram capazes de perceber, o pequeno caranguejo levantou o corpo-cabeça ativando suas patas e correu rapidamente de volta ao buraco. não espero que faça tanto sentido assim — o andar lateral fez sentido por um momento, como se fosse para trás e para frente sim, mas seguindo uma linha de banda. não se ultrapassa o passado e o futuro assim tão depressa, afinal. ainda estou, ainda estamos. lado a lado e talvez um tanto presos a formas de se mover.

por fim, e já atrasada para a pizza, essa sim, tradicional de domingo, o movimento dos corpos. hoje fiz yoga e talvez somente por isso tenha conseguido concentrar para digitar esse relato estranho. por pouco, muito pouco, não ficaram essas palavras abrigadas no infinito dos meus caderninhos de anotações. o tempo que passo longe daqui, às vezes passo por lá, nas páginas que abrigam minhas angústias e sonhos. sobre isso preciso dizer que engordei dez quilos do peso que considerava ideal para mim, ou que disseram ser o ideal para minha altura. nunca vi nutricionista nenhuma dizer que tudo bem manter meu peso e mesmo nas épocas em que estive magra, esquelética já me chamaram, o mandato era sempre perder. reconheço a anomalia dos tempos, a disfunção que paira todos os sujeitos agora. corpo, mente, espírito, tudo remexido, desconcertado, desencaixado. basta que levante os braços um pouco ou gire o tronco para ouvir crec-crec, meus ossos tentando se encaixar dentro de mim. quase sinto meus órgãos se apertando e, embora esteja trabalhando para aceitar meu corpo mais volumoso que nos últimos anos, realmente sinto minha matéria pulsando, como quem grita internamente. talvez consiga manter rotinas mais saudáveis, quando der, e tento não exigir que seja 24/7, 30 dias no mês, sem furos ou através de condenação rígida. vem palpitando em mim o desejo de movimento do meu eu físico por ter energia demais aprisionada, vozes silenciadas, perguntas não respondidas, vontades negadas. apesar disso vou parar o texto nesse caminho torto — já bateram à porta duas vezes anunciando que chegou a pizza e comê-la em família no domingo à noite é sim uma tradição dessa casa. algumas consigo honrar. outras não preciso.

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