[caminho ou autoficção]

Ariane Almeida
2 min readApr 27, 2022

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Migração (2021) | colagem sobre papel

acordei antes do sol raiar. sempre me confundo com isso de sair de um lugar e chegar a outro e então sair do outro e voltar ao lugar inicial. estar em trânsito talvez seja o estado permanente do corpo que ocupo e, apesar dos frequentes deslocamentos, mal me ajusto ao vaivém.

quis desistir dos planos e remarcar tudo para, em troca, repousar um pouco mais. nesses dias tenho carregado pesos e minha pequena mochila nem ao menos está abarrotada; cabeça cheia também faz doer as costas. embarquei e ora, como pude esquecer os fones de ouvido?

silêncio durante o trajeto. ninguém ousava puxar assunto, nada além do “bom dia” ao entrar e ao sair do carro. estrada é tempo em que a gente se percebe sozinha, mesmo e principalmente na companhia de estranhos. melhor assim: assisto da janela o espaço virar outro…

sem uma trilha sonora ao fundo, meus pensamentos são os ruídos que atrapalham o rasgar do vento em alta velocidade. será cedo demais para pensar a pesquisa? pego o caderno no bolso menor e tento desenhar, em movimento, os fluxos de outras viagens em anos anteriores.

pessoas se ferem ou partem dessa vida no tráfego; lembro do acidente do meu irmão, do pânico em dirigir do meu pai, do estudo de transportes a partir da engenharia. por aqui o deslocamento é rodoviário e não esqueço: há 4 anos, casos de trânsito matavam mais que de dengue.

“embora desatualizada, essa informação pode ainda ser verdade” volto a pensar; o movimento me agrada tanto exatamente por vê-lo como enfrentamento da morte? são 5:30 da manhã e a essa hora o céu é espetáculo puro; parece sonho ou na vida vamos despertando aos poucos?

computo mentalmente: um homem caminha na faixa de segurança longe de qualquer indício do fim do percurso, mais um animal morto por atropelamento, fumaça no mato e nenhum buraco desconhecido no asfalto. no papel: êxodo urbano por estudo, trabalho, amor ou os três.

em congestionamento: cinco mulheres esperam o ônibus segurando as bolsas à frente do peito, mais um humano abandonado por negligência, cinza atmosférico e qualquer prédio conhecido no trajeto. em mim: partida do corpo, casa, cidade ou os três.

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